Djonga e seus inimigos que nem existem, a Cor Púrpura de Alice Walker e as terapias de Jay-Z

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7 min readOct 17, 2022

No dia 13 de outubro de 2022 o rapper Djonga lança seu novo álbum de estúdio intitulado “O Dono do Lugar”. Cheio de referências, começando pela capa inspirada no clássico de Miguel de CervantesDom Quixote — até a própria narrativa do álbum, o rapper se (re)afirma no que já vêm sido dito e de uma maneira surpreendente, à lá Kendrick Lamar, consegue se renovar, se mantendo-como um dos principais e mais relevantes artistas da cultura brasileira.

“uma experiência musical, sobre minha luta contra os moinhos de vento, contra inimigos maiores que eu, ou que não existem, uma reflexão sobre indústria da música, masculinidade preta. . .sobre como as pretas que me cercam me seguram, sobre como meus filhos me salvam. . .um disco que diz mais do que isso tudo, pq sou um geminiano impetuoso demais pra seguir o protocolo. . .só quero que ouçam dia 13do10. Djonga em post no instagram sobre disco.

Ser artista deve ser fácil. Você externaliza seus sentimentos, suas vivências, suas impressões sobre o mundo e compartilha-as com quem quiser. Pra quem não quiser, beleza, vida que segue. Mas se no mundo que vivemos ser artista fosse só fazer a sua arte… junto com o título de artista vem a fama e a fama requer muito mais do que só externalizar o que se tem por dentro. Quando você consegue fazer isso e, com apenas isso, tocar a alma de multidões, você é chamado de ídolo.

Ídolo: substantivo masculino

imagem que representa uma divindade e que se adora como se fosse a própria divindade.

2. (FIGURADO) pessoa ou coisa intensamente admirada, que é objeto de veneração.

“Não é um prêmio que vai me dizer se eu sou o homem do ano/ Uma fã se ajoelhou pra me saudar/ Eu disse: Só se ajoelhe perante a Deus/ Depois disso que ela não quis se levantar/ Minha gente não tem referência, olha o que eu sou pros meus/ O que te faz especial não é o “sim” que ‘cê ouve/ O que te faz especial é o “não” que ‘cê fala/ Diante daquela proposta que podia mudar tudo/ Inclusive sua essência.” Até Sua Alma —Djonga feat Tasha e Tracie

Mas até um ídolo precisa de reinventar. Encontrar formas de dizer o que já foi dito. Mostrar para seu público novas possibilidades, novas perspectivas. Reforçar o problema. Instiga-los a encontrar a cura.

E especificamente em algumas faixas do álbum o rapper faz isso, como na faixa citada acima, “Até Sua Alma”, que conta, e não por menos, com a participação da dupla Tasha e Tracie, em meio a inúmeras referências, inclusiva a própria dupla, os três juntos confirmam, o que talvez seja, a trindade do pensamento e influência do povo preto jovem e periférico e o novo ponto de vista?

Não é sobre o que eles representam, é sobre a carência que temos de representação e referência.

Ou na faixa “Conversa Com Uma Menina Branca” onde Djonga toca em assuntos políticos e sociais como, feminismo branco x feminismo preto, machismo, violência policial, bullying, extermínio do povo preto, ancestralidade, ao relatar uma conversa que muitos de nós já tivemos.

“Na conversa com uma menina branca/ Eu falei que não era sobre ela/ Que se fosse individual/ Existia uns barraco/ E não tinha favela/ E ela disse que preferia,/ Debater com uma mina preta/ Homens negros são violentos/ Quase sempre perdem a cabeça/ Ouvir aquilo me machucou Levantei a voz, senti a malícia/ A conversa com a mina branca acabou/ Com ela chamando a polícia. “Conversa Com Uma Menina Branca — Djonga.

Além da faixa Dom Quixote, Djonga referência outra obra clássica da literatura na faixa A Cor Púrpura, do romance de mesmo nome de Alice Walker. Lançado em 1982, conta a história da menina que foi abusada pelo próprio pai e tendo tido dois filhos com ele, foi obrigada a se casar com um homem mais velho e separada de sua irmã, tudo isso tendo como plano de fundo o racismo, machismo e patriarcado dos EUA.

Mas o romance de Alice Walker também é sobre amor, amizade, bondade e esperança, muita esperança… e sobre a cultura de dor.

“Querido Deus/ Uma pessoa me tocou sem eu querer/ E ainda me convenceu que eu gostava/ Molhou com seu suor minha pele infantil/ E secou minhas lágrimas sempre que eu chorava/ É, numa tarde chuvosa tudo começou/ Um sorriso amarelo sempre que acabava/ E temente ao senhor, gente que sempre louva…” A Cor Púrpura — Djonga

Se Kendrick Lamar afirma em The Heart Part 5 que “I come from a generation of pain”, Alice Walker em sua obra com a personagem Celie nos mostra tudo de ruim que um ser humano pode passar em sua vida e mesmo continuar tendo um bom coração, pureza e esperança, e isso de uma maneira não clichê, a narrativa nos conduz de maneira eficaz, mostrando o que a “cultura”, “a geração de dor” é capaz de fazer com as pessoas. Pessoas são machucadas, pessoas machucam. Pessoas sofrem, pessoas pouco conseguem compreender o sofrimento do outro.

“Um homem matou outro homem por coisas que mamãe diz que são coisas de homem/ Esse foi o primeiro contato verdadeiro/ Que eu tive com o que me parece que é ser um homem” A Cor Púrpura — Djonga

Djonga referência o romance no título de sua música porque é através dela que se mostra consciente, vítima, influenciado e, também, parte dessa cultura.

E foi assim, que eu me vi/ Tu é igual nós/ Dói igual em todo mundo, mano.

Tem uma entrevista do Jay-Z para o jornalista Dean Baquet do The New York Times, em 2017, para o lançado do álbum 4:44. Baquet compara o disco do rapper a uma sessão de terapia e o mesmo confirma a comparação, já que, durante o processo de criação do trabalho, ele realmente fez terapia.

Dean Baquet: O que você falou (na terapia) que nunca tinha admitido pra si mesmo ou falado sobre?

Jay-Z: Eu cresci muito com essa experiência (terapia). Acho que a coisa mais importante que entendi é que tudo está conectado. Toda emoção está conectada e vem de algum lugar, e apenas estar ciente disso, estar ciente disso na vida cotidiana te dá uma grande vantagem. Sabe, você percebe que quando alguém é racista com você, nem tem a ver com você, tem a ver com a formação deles e o que aconteceu com eles que os levou a esse ponto. Sabe, a maioria dos bullies sofreram bullying, acontece. E quando eu entendo isso, ao invés de reagir a isso com raiva, eu posso usar uma abordagem mais leve. Eu tava dizendo isso que tinha muitas brigas no meu bairro que começavam com “o que você ta olhando?” e então você percebe “oh você acha que eu tô te vendo. Você ta num espaço onde está sofrendo, e acha que eu tô te vendo e por isso não quer que olhe pra você, você não quer que eu te veja vulnerável, não quer que eu veja a sua dor. E você usa uma armadura de pessoa forte, de que está realmente disposta a brigar comigo e até me matar porque eu olhei pra você. Saber disso, entender isso, muda a vida completamente.

Ao longo da entrevista Jay-Z, como fez no álbum 4:44 “abre sua alma” e faz reflexões sobre casamento, indústria, rap, filhos, amigos, política, cultura e também se reafirma como parte de uma geração que veio da dor. Ao citar a letra de Song Cry, onde o rapper diz

“Nunca vi elas descerem dos meus olhos, mas tenho que fazer a música chorar.”

A coisa mais forte que um homem pode fazer é chorar. Expor seus sentimentos, ficar vulnerável na frente do mundo. Isso é força de verdade.

Se 4:44 foi o resultado da terapia de Jay-Z onde ele, ao entender o mundo e como tudo está conectado, entendeu mais sobre si mesmo. Mrs Morale de Kendrick é a denúncia sobre como a cultura influencia na vida das famílias negras do mundo. O Dono do Lugar traz também a consciência, a empatia e como, por mais que tenhamos tudo isso, existe algo maior que nos coloca dentro sempre

É, querido Deus/ Aqui em casa, somos três agora/ Nós somos quatro agora/ E um de nós me disse que alguém o toco/ Foi uma mordida, ele tava na escola/ É, foi gente querida, foi tipo gente nossa/ Foi gente igual ele, tipo foi gente nova/ Mas pega esse moleque e faz seu nome, neguin’/ Filho meu não vai ficar de piada na roda/ Ele mexe a cabeça em sinal de negativo/ O silêncio fala, o mundo chama pra fora/ Nasci de novo, será o fim de um ciclo? Querido Deus/ Acho que alguém me tocou agora

Como num ciclo vicioso e impossível de ser quebrado porque não depende só de nós. Porque somos condicionados a isso… porque não somos os donos do lugar. Porque o dono do lugar seja nosso inimigo. Seja maior do que nós. Ou talvez nem exista.

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Precisamos Falar Sobre:

“Da leitura era preciso tirar outra sabedoria. Era preciso autorizar o texto da própria vida, assim como era preciso a construir a história dos seus.”