O inteligente American Fiction, filme indicado ao Oscar critica a
tragédia negra vendida para consumo e fetiche da indústria.

Precisamos Falar Sobre:
4 min readMar 10, 2024

O chamado efeito catártico na literatura se dá quando uma obra é capaz de aflorar emoções como raiva, tristeza, angústia etc. Na antiga Grécia, através do contato com uma obra, que na época nos eram apresentadas através da atuação, ao ver os personagens enfrentando sua jornada, destino e conflitos, era possível relacionar o que estava sendo encenado com nossos próprios sentimentos pessoais, nos fazendo ter contato, muitas vezes, com o que estava oculto ou de lado.
A tragedia grega então, tinha essa função, de através de sua exposição de dor, problemas e sentimentos de personagens, fazer o público experimentar sentimentos e assim, como diz Antônio Cândido “humanizá-los”. Mas hoje em dia, qual a função da literatura e da arte no geral? O filme de 2023, American Fiction, longa que marca a estreia de do talentoso Cord Jeferson, que já estreou se destacando.

Na trama acompanhamos a história do escritor Monk, um escritor que não está em um momento muito bom na carreira. Seus livros não estão sendo bem recebidos, pois o público está interessado em narrativas mais “negras”. Monk é esse grande escritor e professor, após uma aula em que abordou temas relacionados a escravidão onde fez uma aluna branca chorar, ele é afastado do cargo e por isso volta a sua cidade natal na casa de sua família. Como já dito, os livros de Monk já não estão sendo aceito pelas editoras que estão procurando por escritores negros que retratem o que, aos olhos deles e do público, narrativas negras; como por exemplo, o mais novo bestseller da vez “We’s Lives in Da Ghetto” da escritora Sintara Golden (Issa Rae).

A história de Sintara representa tudo o que Monk critica: colocar pessoas pretas dentro de um estereótipo e reforçar ele, pois é assim que a indústria, pessoas brancas, racistas e etc, estão acostumadas e querem ver.com isso, Monk decide fazer uma crítica a tudo isso e escreve uma história cheia de
estereótipos, violência, tortura e degradação, porém, o tiro sai pela culatra: a editora, a crítica e o público, passa a aclamar a história e ele recebe uma ótima oferta financeira pra lançar o livro. Por conta de problemas familiares que está enfrentando, ele decide aceitar por conta do dinheiro, porém passa a vivenciar e ter que fingir ser tudo aquilo que ele abomina.

O filme aborda de maneira inteligente e racional o tema da representatividade que vem sendo muito discutido, pois afinal, o que está sendo representado? Para quê? Pra quem? Por quem? E que maneira? Fora desse âmbito, vemos Monk e os demais personagens de seu círculo, em suas rotinas “normais”, vivenciando traumas, amizade, amor, questões de saúde, enfim, não há nenhuma tragédia negra a ser explorada em sua vida além da história que a indústria branca quer que exista em sua narrativa.

O debate proposto em American Fiction, lembra a jornada de um personagem que ficou muito famoso nos últimos tempos, Miles Morales, o homem aranha do Aranhaverso. Miles é um personagem que conquistou o coração de todos por diversas caracteristicas, mas o que mais chama atenção e a sua persistência e vontade de mudar o futuro!

No primeiro filme já foram recebidas algumas críticas nesse quesito de
representatividade, pois ao mesmo tempo que Miles representava as minorias, sua história ainda carregava o peso do estereótipo do jovem negro no mundo do crime. De alguma maneira, isso foi reforçado com o fim do segundo filme, mas ainda assim existe um discurso na narrativa e na luta do Miles de não convencer com esse futuro e mudar a sua própria história. Existe um premeditado nas representações artísticas de personagens negros, onde suas histórias são contadas a partir da escravidão, de traumas, de estereótipos, tragédias e superação e é obvio que essas histórias precisam ser contadas; o racismo precisa ser debatido, refletido e combatido. Mas percebe-se que há, além dessa necessidade, um fascínio em cima disso e vindo de diversos grupos, seja dos próprios
racistas, que ao ver, ler ou ouvir, essas tragédias, tem seus preconceitos alimentados; seja por parte dos progressistas que enxergam essas pessoas como objeto de análise, objeto de pauta ou simplesmente para validarem o seu discurso de inclusão antirracista….

American Fiction é essa riqueza inteligentíssima e assisti￾lo em seus momentos mais sutis e mais reflexivos, consegue nos fazer chegar ao efeito catarse, pois eu também sou isso, também quero mais do que isso e também quero ser eu, em minha totalidade. No que penso, no que sou, no que acredito e nas histórias que quero ler, ouvir, assistir e contar!
Queremos nos ver, ver quem fomos, quem somos, e quem
podemos e queremos ser.

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Precisamos Falar Sobre:

“Da leitura era preciso tirar outra sabedoria. Era preciso autorizar o texto da própria vida, assim como era preciso a construir a história dos seus.”