O primeiro episódio de Atlanta é uma metáfora sobre como repetimos padrões em nossos relacionamentos: vivemos como os nossos pais e pela busca por uma Supernova.

Precisamos Falar Sobre:
8 min readOct 22, 2023

Já dizia Belchior, que apesar de termos feitos tudo, tudo, tudo o que
fizemos, ainda somos os mesmos…

A quarta e últeima temporada de Atlanta encerra seu ciclo da mesma
maneira que começou: majestosamente! Poucas produções chegam no
nível de Atlanta e a genialidade de Donald Glover e seus colaboradores
entregam algo tão magnifico que somente eles na indústria atual seriam
capazes de fazer. Dando origem a várias abordagens possíveis, a
temporada segue os quatro protagonistas “encerrando” seus ciclos
pessoais e junto a isso, o ciclo de Earn e Vanessa que, desde a primeira,
temporada vivem em um looping de idas e vindas, brigas e acertos, outros
relacionamentos, amor e dúvidas.

Após os acontecimentos da terceira temporada, onde vimos
Vanessa entrando em conflito sobre sua própria vida e escolhas,
enquanto Earn, mesmo se relacionando com outras pessoas, parece
preocupado tentando se reaproximar dela. A quarta temporada se inicia com o casal indo até o shopping comprar um celular e, ao chegaram lá, os dois personagens começam a encontrar seus ex namorados e namoradas. No início, eles até conversam com os primeiros, causando ciúme um no outro e acabam percebendo o quanto seus ex não mudaram. Por exemplo, quando Vanessa encontra um dos seus ex trabalhando em uma loja de celulares, relembra que, quando namoravam, há anos, ele trabalhava no mesmo lugar. Quando a situação começa a ficar esquisita, os dois decidem fugir daquele lugar, pois não querem mais continuar encontrando aquelas pessoas, mas sem sucesso, eles parecem sempre voltar para o mesmo lugar. Quando encontram novamente a ex Kenya,
que diz também estar perdida e perguntam se ela lembra qual filme
estava passando quando ela chegou e ela responde “Truque de Mestre
2”, filme de 2016, enquanto o ano em que estão é 2022.

Então eles fogem desesperadamente a procura da saída e quando Earn diz que vai até algum lugar checar, Vanessa pergunta se ele realmente vai deixá-la lá, com as outras ex, e ele responde que nunca deixaria ela se tornar elas. Quando encontram um túnel que parece ser a saída, eles entram e enfrentam paredes úmidas e nojentas, um lugar apertado e escuro, mas com uma luz brilhante no final. Ao conseguirem sair, percebem que Kenya os seguiu, assim encontrando a saída também. Mas sem sentir mais desconfortável, Vanessa oferece uma carona pra ex de seu atual, pois ela não é um problema, também estava perdida no shopping, tentando sair… é impossível analisar o arco Vanessa e Earn sem olhar para seus arcos pessoais.

Vanessa parece perdida desde a primeira temporada, se revezando c suas tarefas de mãe, seu trabalho rotineiro, encontros casuais e suas idas e vindas com o pai de sua filha. Enquanto Earn, desde a primeira temporada, após os acontecimentos em Princeton, precisa provar pra todos e pra si mesmo que é capaz de vencer, de se tornar bem-sucedido e que é realmente digno de confiança, seja de seu primo, de seus pais, sua filha, de Van, de si próprio e de confiar nas pessoas também. Após isso, ele está pronto, ele realmente sabe o que quer agora, que é poder viver toda a vida que batalhou pra conquistar ao lado da pessoa que ele gosta. Como ele mesmo disse, poderia viver isso com qualquer uma, mas ele quer viver com ela. já Vanessa, no entanto, precisava da segurança de uma relação, da decisão de Earn de que queria viver isso com ela, não por ela ser a mãe de sua filha, mas por ela ser quem é e para além da ficção e da representatividade, nós sabemos que as pessoas no geral, principalmente mulheres e mulheres negras, as vezes necessitam de uma segurança em uma relação e de serem escolhidas. Mas para isso, Earn precisava trilhar a sua caminhada e lidar com seus traumas e Van entender quem realmente é e o quão grande isso significa e os dois só conseguiram olhar pra isso ao olharem para seus relacionamentos anteriores e decidirem fugir do labirinto que era os relacionamentos passados, para isso precisaram passar juntos pelo túnel escuro.

Como canta Belchior, com um certo pessimismo realismo na canção
Como Nossos Pais:
Nossos/ ídolos ainda são os mesmos/ E as aparências não enganam, não/
Você/ diz que depois deles/ Não apareceu mais ninguém

Vivemos num mundo de aparências, julgamos nossos antepassados ou
as pessoas que estão em nossa volta nos afirmando de discursos novos
e progressistas sobre amor e relacionamentos, mas na verdade a maioria de nós continua repetindo padrões. é muito cômodo nos depararmos com os mesmos problemas vividos em relacionamentos anteriores e resolver simplesmente não lidar com aquilo, para não precisar vivenciar o trauma novamente. Mas não reviver o trauma não significa lidar e resolver ele e aí que repetimos os padrões e nos afastamos mais ainda de viver o nosso discurso na prática. Quando Belchior inicia sua poesia cantando:
“Não quero lhe falar, meu grande amor/ Das coisas que aprendi nos discos/
Quero lhe contar como eu vivi/ E tudo o que aconteceu comigo/ Viver é
melhor que sonhar/ Eu sei que o amor é uma coisa boa”

É sobre olhar para as suas experiências, dessa vez não vai ser a teoria ou as referências, não vai ser sobre o se sonha, mas sim sobre o que se vive. Ele olhou pra isso e quer dividir isso com a pessoa que gosta, falar sobre isso. Ele sabe que o amor e uma coisa boa, boa e real, para além do ideal, além do sonho. Ao analisar isso, ele conclui que mesmo tentando romper os seus padrões, continuamos sendo os mesmos, repetindo esses padrões…

Se nos anos 70 Belchior concluía que ainda somos os mesmos, em
2022 Vanessa e Earn olham para seus ex e decidem percorrer o túnel escuro para encontrar a luz, em 2023 Zudizilla nos apresenta os dois
lados na canção Supernova. Na canção, o rapper mostra a dificuldade que temos ao assumir uma nova relação, como nossos próprios demônios podem interferir no processo e como os padrões impostos pela sociedade nos limitam de viver o que realmente sentimos.

Duas taças vazias na mesa/ as coisas mais simples da vida me lembram tu/ quase não consigo mais ser eu/ preciso deixar a vida seguir seu fluxo/ sem que tu me puxe/ ou que eu te puxe/ sem que tu me evite/ ou que eu te empurre/ nós dois juntos é sempre uma estrela no céu que acende/ é a quebra do silêncio/ o prédio até sente quando não tamo/ tudo é mais leve quando não tem ciúme/ tô pensando em te ligar mas não vou porque eu tô mergulhado e afogado no meu orgulho

Zudizilla expõe mistura de tudo isso no verso, o que acha ser o certo que é deixar a vida fluir com cada um seguindo o seu caminho, a percepção dos de fora sobre os dois, o que realmente sente e não consegue por em prática pois além de estar mergulhado, está também afogado em seu orgulho

Eu não tenho costume de explodir nos outros/ Mas tu me transforma
no que eu não curto/ Não controlo meu impulso/ Viciado no teu perfume sei que já não tem mais jeito/ Quando disse que não te queria perto/ Era um método de te salvar do inverno que eu carrego/ É eterno frio/ Não parece
certo mas não era o fim quero teu afeto sim/ Mesmo que eu não enxergue
o que tu enxerga em mim/ Peço que entenda meu lado complexo/ Nos
encontramos num roteiro sem nexo/ Fecho a porta do passado e ele
persegue esquece

A letra de Supernova poderia ser a trilha sonora do arco de Van e Earn
em Atlanta e de vários outros casais que decidem encarar o túnel escuro
em busca da luz, para isso e preciso que cada um conheça seus traumas,
que saibam o que realmente querem, que olhem para seus relacionamentos anteriores e tentam não repetir os padrões…
Meses se foram sentado na cama pensando quando que essa sina ia se
acabar/ Enquanto esperava uma chance pra poder dar tudo numa relação
que fosse real/ Me canso de pensar que o estereótipo que adoram na
verdade é o que impede alguém de me amar/ eu não tenho, outra saída que
não seja pelos teus olhos/ outra viagem que não seja pelo teu beijo/ Outro
desejo que não seja te abraçar agora”

Ou deixar que estes padrões falem mais alto do que os nossos próprios
sentimentos, pois vivemos em mundo de aparências que faz com que não
sejamos fiéis a nós mesmos e as pessoas que amamos. Isso vai tornando
as relações no geral cada vez mais liquidas e rasas, muitas pessoas deixam
de fazer o que sentem, sejam ficar juntas ou até separar, pois repetem
padrões, vivem como seus pais…
Vanessa e Earn, num processo longo e duvidoso, escolheram a Supernova, pois eram isso que sentiam e após lidarem com suas próprias complexidades, o efeito que causavam um no outro, concluíram que eram
melhores juntos e isso é mais revolucionário do que qualquer discurso.
Assim o arco desses dois personagens se encerra de uma maneira tão linda, critica, reflexiva e real, do jeito que só Atlanta e capaz de fazer.

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Precisamos Falar Sobre:

“Da leitura era preciso tirar outra sabedoria. Era preciso autorizar o texto da própria vida, assim como era preciso a construir a história dos seus.”