Passagem (Causeway)é sobre a necessidade de encarar traumas e adquirir aliados nessa jornada.

Precisamos Falar Sobre:
4 min readOct 14, 2023

Muito se discute sobre o que é cinema ou arte e o que não é. O fato é que tudo muda e se a sociedade muda, a maneira de fazer arte também. O cinema vem se tornando cada vez mais uma fuga da realidade, seja por meio da comédia, da ação ou da fantasia. O público não quer mais que a arte imite a vida, talvez queira que a vida imite a arte. Por sorte, vez que outra, se procurarmos além do que está sendo oferecido a goela abaixo, encontramos preciosidades como Causeway, onde vemos a vida como ela é na tela e somos inundados catarticamente, de uma maneira que só quem ama ver a vida nas telas é capaz de entender.

Em Passagem, acompanhamos Lindsay (Jennifer Lawrence de Jogos Vorazes), uma ex engenheira militar que após sofrer um grave acidente que lhe causou uma lesão cerebral, está de volta a sua cidade e conhece o mecânico James (Brian Tyree Henry — Eternos), com quem vai desenvolver uma linda amizade.

Acompanhamos a personagem de Jenifer em sua jornada para recuperar coisas básicas na vida do ser humano e a lidar com o trauma causado peloacidente, para então voltar para o trabalho, já que, ela fugiu de sua cidade, de sua casa e de sua família e aos poucos vamos percebendo que o verdadeiro trauma de Lindsey que precisa ser curado, vem antes do incidente. Havia muitas questões para serem tratadas da personagem com família e consigo mesma, com as próprias atitudes e decisões tomadas, as quais ela não conseguia encarar.
Somente ao se conectar com o outro, conhecer a história e a dor de outra
pessoa é que Lindsey se abre para ela mesma, adquirindo coragem para
encarar seu passado e olhar para suas questões.

Esse outro, no caso, é o personagem interpretado de maneira belíssima por um dos maiores atores dessa geração (Brian Tyree Henry, o Alfred Milies- Paper Boi - de Atlanta), James, que também carrega em suas costas um acidente, mas junto com ele a culpa por ter tirado a vida de alguém. Além da culpa, ele também traz em seu corpo essa marca. O vestígio do acidente vivido por James serve de metafóra para o luto, já que ausência de um membro no corpo que ainda causa dores e a impressão de estar ali, faz referência a como nos sentimos quando perdemos uma pessoa. Talvez isso e não ter ido embora para fugir de seu passado, seja o que diferencia James de Lindsay, que evitava qualquer lembrança que pudesse lembrá-la da razão de ter ido embora.
E nesse percurso vamos acompanhando esses dois personagens quebrados se conectando, pois a conexão com outro e tudo o que temos. Olhar o outro, perceber suas dores, seus traumas, suas razões, tentar entender os porquês e a causas que movem a outra pessoa e receber isso em troca, é o que nos torna humanos, é o que nos ajuda a olharmos pra nós mesmos com mais afeição e acolhimento, assim, nos fazendo aprender a lidar com nossas próprias complexidades.
No entanto, construir essas conexões não é fácil e filme também aborda
o que pode acontecer quando, seja para nos defendermos ou para tentar
ajudar o outro, utilizamos a sua dor e o seu próprio trauma o conta. O julgamento nos acompanha o tempo todo e a intimidade nos deixa suscetíveis a isso. Mostrar nosso pior lado é uma linha de mão dupla,
pois ao mesmo tempo que é aliviante, também é perigoso, assim como
ver o pior lado do outro. Quando Lindsay e James chegam a esse ponto
da relação, ela quebra, pois todo o apoio e acolhimento que encontraram um no outro se tornou uma disputa de quem fere mais, pois ambos são seres humanos, feridos, tentando lidar com tudo aquilo. No final, o que os difere é reconhecer isso, isso e todo o resto.

Portanto, esse não é um filme para qualquer um. Ele é arte imitando a
vida. Um filme cheio de diálogos, simples e diretos; cheio de silêncios que dizem muito; de olhares vagos e esperançosos e de drásticas reviravoltas interiores. Algo que provavelmente deixaria a maioria das pessoas entediadas, pois estamos cada vez mais acostumados com cenas mirabolantes, diálogos prontos, reviravoltas inacreditáveis, cenas com efeitos especiais, enfim… cada vez mais queremos fugir de assistir obras que refletem a nossa vida, nossos sentimentos, nossos traumas…

Passagem é um filme sobre a importância de criar conexões, sobre como perceber a dor do outro nos ajuda a perceber a nossa; como entender o outro nos ajuda a entendermos a nós mesmos; como acolher o outro faz com que sejamos mais acolhedores de nós mesmos. Estamos todos quebrados, juntando nossos pedacinhos e ter alguém que as vezes possa nos ajudar a encontrar algum deles perdido por aí é o que faz a vida realmente valer a pena!

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Precisamos Falar Sobre:

“Da leitura era preciso tirar outra sabedoria. Era preciso autorizar o texto da própria vida, assim como era preciso a construir a história dos seus.”